Wednesday, June 27, 2007

"A força do hálito é como o que tem que ser.
E o que tem que ser tem muita força.

Vai (ou vem) um sujeito, abre a boca e eis que a gente,
que no fundo é sempre a mesma,
desmonta a tenda e vai halitar-se para outro lado,
que no fundo é sempre o mesmo.

Sovacos pompeando vinagres e bafios,
não são nada --bah...-- em comparação
com certos hálitos que até parece que sobem do coração.

Ai onde transpira agora
o bom sovaco de outrora!

Virilhas colaborando com parentesis ou cedilhas
são autênticas (e sem hálito) maravirilhas.
Quando muito alguns pingos nos refegos, nas braguilhas,
amoniacal bafor que suporta sem dor
aquele que está ao rés de tal teor.

Mas o mau hálito é pior que a palavra
sobretudo se não for da tua lavra.

Da malvada, da cárie ou, meudeus, do infinito,
o mau hálito é sempre, na narina,
como o baudelaireano, desesperado grito
da "charogne" que apodrecer não queria."

by Alexandre O'Neil

Tuesday, June 26, 2007

"PECHISBEQUE
o meu corpo tem ondas e nervos de plástico rijo
operacionaliza-se da porta fora
baila, range e salta para um palco
sapateia olhares e degraus.

[ a expressão de um corpo é um chapéu-de-chuva!]

o corpo é a volúpia dos olhos
é a carne dos lábios.
os olhos são emissores de maquilhagem
o corpo é a maquilhagem de trazer por casa.


reparem, faz-se este jeito, aquela pálpebra
este posicionamento da mão,
aquele ângulo da perna,
este sorriso tangente à confiança.

grito porque não vejo quem saiba dançar
espremo-me porque ninguém está nú.

porque é sempre preciso retocar a transparência
é preciso saber dançar tango e passo doble.

ser de pechisbeque enamora as calçadas,
porque somos genuinamente cinematográficos


mas onde está a vossa uterina liga de metais?

tenho a minha guardada num saquinho de veludo!


aguardo nova agenda de espectáculos. "

by José Miguel Vitorino

in
http://www.piquenique-avecmoi.blogspot.com/

Monday, June 25, 2007

"Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é nao ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora ah, lá fora! ? rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra"

Mário Cesariny

Sunday, June 24, 2007

CHUVA OBLÍQUA (I)


"Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas o meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma..."

Fernando Pessoa

Friday, June 22, 2007

"Olhava as relações como quem vê objectos por detrás de uma montra. Como se não fizesse parte delas, vendo-as de fora, gravitando por cima, silenciosa e laconicamente. Saía disposta a fazer gastos, entusiasmada com as novidades, as novas colecções, as modas da estação.

Via, primeiro de longe, e depois de mais perto, já inclinada como quem espreita através do vidro, chegava a convencer-se de que esta ou aquela peça tinham sido talhadas para si, como fatos de alfaiate.

Decidia-se e, num impulso consumista, arriscava tudo e abria a porta. Experimentava. A cor era perfeita, no manequim os contornos ficavam irrepreensivelmente marcados. Por não ser capaz de comprar sem experimentar, pedia o seu tamanho (o mesmo há anos salvo pequeninas oscilações) e dirigia-se ao provador. Antecipava os sacrifícios que teria de fazer pelo inesperado capricho, as contas complicadas para suportar aquele gasto tão fora dos planos. Mergulhava naquele mar de tecido, emergia e olhava-se ao espelho.

Como de todas as outras vezes: grande demais, pequeno demais, justo demais, largo demais, com muita cor, sem cor nenhuma, demasiado áspero o tecido, demasiado dengoso o toque, comprido demais, excessivamente curto, desconfortável, insuficientemente formal. Saía, invariavelmente, de mãos vazias para percorrer uma enorme avenida de sensibilidades e regressar a casa como de costume: sem nada de novo.

Percebeu que, nas emoções, como nas vestes, não valia a pena investir senão na alta costura, na qualidade dos materiais, no corte feito rente ao corpo por mãos experimentadas e capazes.

Tornou-se, a partir desse momento, uma windowshopper emocional. Tudo porque nunca ninguém lhe ensinou como comprar nos saldos."

in http://melcomcicuta.blogspot.com/

Thursday, June 21, 2007

"Contemplo o lago mudo

Que uma brisa sacode.

Não sei se fodo tudo

Ou se tudo me fode.


A brisa é o lago a ir

A uma ideia de mar.

Não sei se me ate a rir

Ou desate a chorar.


Trémulos vincos medonhos

Cercando a água toda,

porque fiz eu dos sonhos

A minha única nódoa?

...

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!

Supor o que dirá

Tua boca velada

É ouvir-te já.


É ouvir-te melhor

Do que o dirias.

O que és não vem à flor

Das caras e dos dias.


Tu és melhor - muito melhor! -

Do que tu.

Não digas nada. Sê

Alma do corpo nu

Que do espelho se vê."


Mário Cesariny
in “O Virgem Negra”

Monday, June 18, 2007

"Rainha de Copas (1)
Por baixo das arcadas do edifí­cio onde trabalho, ao longe, reconheço o perfil de uma antiga colega de liceu. Já não me recordo do seu nome. Acho que é Carla. Ela tem cara de Carla. Tem mesmo. Detesto o nome Carla. Se a minha mãe tivesse tido a infeliz ideia de me chamar Carla, eu, assim que completasse 18 anos, mudava de nome. Desculpem-me as poucas Carlas que conheço e também as muitas que não conheço, mas Carla é nome de mulher de 40 anos, com permanente no cabelo, que passeia, aos domingos, nos centros comerciais de mão dada com um marido de bigode, fio de ouro ao pescoço e fato de treino brilhante. A dita colega, a quem chamarei Carla, está com o antigo namorado. Passado tanto tempo, o dito já deve ter subido de estatuto. Agora deve ser cônjuge, marido, de papel passado e aliança no dedo. Devem ter filhos. Dois no máximo. Um Tomás e uma Carolina. Devem viver num apartamento na Bobadela, no Prior Velho u na Quinta da Piedade. A Carla é grande e gorda. Parece uma vaca leiteira. É feia. Tem um ar, como hei-de dizer, bovino-suí­no. Tem mesmo. Já o marido é miudinho, pequeno, murcho, mí­nimo. Parece um anão imbecil ao pé dela. O cabelo muito penteado. Quando os vi lembrei-me imediatamente da insuportável Rainha de Copas e do seu soberano marido, do filme "Alice no Paí­s das Maravilhas". Vi este filme centenas de vezes, até à exaustão, quando o João era pequeno. Para além de se parecer fisicamente com a dita personagem, a Carla tinha, e deve continuar a ter, um feitio detestável. Invejosa. Era tão invejosa. Era daquelas estúpidas que tinha inveja das notas dos outros. Podia ter uma nota razoável, um 15 ou 16, mas ficava visivelmente transtornada com o facto de alguém ter melhores notas do que ela, o que, aliás, acontecia quase sempre. "
in http://ana-de-amsterdam.blogspot.com/

Wednesday, June 13, 2007

"Derramava a consciência por detalhes prioritários. Como picada de mosquito foi o lembrar incómodo da banalidade que a todos já sucedeu – “Estou sem bateria; falamos quando chegar.” Suspendi o gesto a meio e da atenção concentrei a entrega. O cocegar da desconfiança empolou-me o espírito como pele que reage ao veneno de insecto. Se não cuidasse de garrote que lhe impedisse o alastrar, ficava arranhado o espírito – reconheço os sinais da tentação de especular, de ir a favor do vento da fantasia, esquecendo o solo firme onde os pés assentam e os factos são.

“Sem bateria”, acrescentara algumas vezes à laia de omissão-mentira, sabendo da minha incompatibilidade entre o ser e o parecer. Em pequena, quando no caminho das mentiras ensaiei os passos, o rubor ou os olhos baixos afadigados em pestanejar tornavam-me transparente. Ao crescer, julguei-me habilitada a tentativas com sucesso – pueril engano!, liquefazia o íntimo e sobrenadava o embuste. Arquivei o balanço dos infelizes ensaios para memória futura e nas crises da verdade limitava-me a omissões. Quando o suporte electrónico do telemóvel deixou de atafulhar o porta-bagagens e o aparelho ficou maneirinho, passei a usá-lo. Viria a coincidir com o novo hábito o mentiroso acrescento ao não-dito – “sem-bateria.” Como pano caído sobre os bastidores dos momentos. Como fuga ao não apetecido. Como mentira descarada. Arranhão doloroso. Infidelidade à boa-fé do outro e ao meu ser."

in http://sempenisneminveja.weblog.com.pt/

Tuesday, June 12, 2007

'Olhava as relações como quem vê objectos por detrás de uma montra. Como se não fizesse
parte delas, vendo-as de fora, gravitando por cima, silenciosa e laconicamente. Saía disposta a fazer gastos, entusiasmada com as novidades, as novas colecções, as modas da estação. Via, primeiro de longe, e depois de mais perto, já inclinada como quem espreita através do vidro, chegava a convencer-se de que esta ou aquela peça tinham sido talhadas para si, como fatos de alfaiate.

Decidia-se e, num impulso consumista, arriscava tudo e abria a porta. Experimentava. A cor era perfeita, no manequim os contornos ficavam irrepreensivelmente marcados. Por não ser capaz de comprar sem experimentar, pedia o seu tamanho (o mesmo há anos salvo pequeninas oscilações) e dirigia-se ao provador.

Antecipava os sacrifícios que teria de fazer pelo inesperado capricho, as contas complicadas para suportar aquele gasto tão fora dos planos.
Mergulhava naquele mar de tecido, emergia e olhava-se ao espelho. Como de todas as outras vezes: grande demais, pequeno demais, justo demais, largo demais, com muita cor, sem cor nenhuma, demasiado áspero o tecido, demasiado dengoso o toque, comprido demais, excessivamente curto, desconfortável, insuficientemente formal.

Saía, invariavelmente, de mãos vazias para percorrer uma enorme avenida de sensibilidades e regressar a casa como de costume: sem nada de novo.


Percebeu que, nas emoções, como nas vestes, não valia a pena investir senão na alta costura, na qualidade dos materiais, no corte feito rente ao corpo por mãos experimentadas e capazes.

Tornou-se, a partir desse momento, uma windowshopper emocional. Tudo porque nunca ninguém lhe ensinou como comprar nos saldos.'

in http://melcomcicuta.blogspot.com/