Saturday, December 29, 2007

Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou Deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco

Escuto - Sophia de Mello Breyner Andresen

Wednesday, December 26, 2007

A estupidez

É difícil viver habitualmente depois de se descobrir que se é estúpido. Há quem leve menos tempo. Há quem descubra isso num instante. Há quem demore três décadas e meia. O último refúgio («ao menos não sou estúpido»), usado e abusado nos piores momentos ou nos mais ridículos. E agora, agora já não vale. Uma inteligência teórica sem voo. Uma inteligência prática cega. A estupidez, como o paciente forçado de um médico positivista, crânio medido e anotado, os estigmas da sua condição nas feições facínoras. Um burguês sem outros talentos especiais tem (quando tem) esse consolo, essa quase salvação: «ao menos não sou estúpido». Uma refrão refractário, como se todos os resultados não fossem prova em contrário. Uma conclusão conclusiva, como se a quantidade não fizesse qualidade. Um homem inteligente que, envolto no manto da sua inteligência, atravessa um rio em que não tem pé, percebe isso a meio, a mais de meio, não pode regressar atrás, não consegue chegar à outra margem, esteve sempre protegido pela sua inteligência, pela suposição dela, que agora fraqueja e logo se evapora. Um homem à morte que de repente se percebe estúpido. Que é estúpido por se ter abeirado assim da morte, confiado em fantasmas. Que por ter avançado assim, crente em assombrações, é estúpido, e definitivamente estúpido. Um homem que de repente não tem pé, mas não é aos seus pés que falta o apoio, é à sua cabeça, ao interior do sua cabeça, uma cabeça que não tem pé, que não tem conteúdo, que não fundamento, assim imóvel num rio que tentou atravessar a vau porque tinha a certeza, e que afinal atravessou porque é estúpido. Na verdade, só os familiares mais próximos deste homem podiam ter por ele alguma piedade, porque ele está onde está por sua vontade, por sua incompetência, porque não soube quem era quando atravessou o rio, porque se soubesse quem era não tinha atravessado. A verdade é que se soubesse quem era não tinha sido estúpido. E foi estúpido, colossal e irrecuperavelmente. Agora tem várias opções, todas elas estúpidas. Aos estúpidos não é concedida nenhuma opção inteligente.

Pedro Mexia

Monday, December 24, 2007

Whats it all about, alfie?
Is it just for the moment we live?
Whats it all about when you sort it out, alfie?
Are we meant to take more than we give
Or are we meant to be kind?
And if only fools are kind, alfie,
Then I guess its wise to be cruel.
And if life belongs only to the strong, alfie,
What will you lend on an old golden rule?
As sure as I believe theres a heaven above, alfie,
I know theres something much more,
Something even non-believers can believe in.
I believe in love, alfie.
Without true love we just exist, alfie.
Until you find the love youve missed youre nothing, alfie.
When you walk let your heart lead the way
And youll find love any day, alfie, alfie.

Burt Bacharach por Patricia Barber

Friday, December 21, 2007

Se eu fingir e sair por aí na noitada, me acabando de rir
Se eu disser que não digo e não ligo e que fico... e que só vou aprontar
É que eu sambo direitinho, assim bem miudinho, cê não sabe acompanhar
Vou arrancar sua saia e pôr no meu cabide só pra pendurar
Quero ver se você tem atitude e se vai encarar

Se eu sumir dos lugares, dos bares, esquinas e ninguém me encontrar
E se me virem sambando até de madrugada e você for ate lá
É que eu sambo direitinho, assim bem miudinho, cê não sabe acompanhar
Vou arrancar tua blusa e por no meu cabide só pra pendurar
Quero ver se você tem atitude e se vai me encarar

Chega de fazer fumaça, de contar vantagem, quero ver chegar junto pra me juntar
Me fazer sentir mais viva, me apertar o corpo e a alma me fazendo suar
Quero beijos sem tréguas, quero sete mil léguas sem descansar
Quero ver se você tem atitude e se vai encarar

Se eu fingir e sair por aí na noitada, me acabando de rir
E se eu disser que não digo e não ligo e que fico... e que só vou aprontar
É que eu mando direitinho, assim bem miudinho, sei que você vai gostar
Vou arrancar tua blusa e pôr no meu cabide só pra pendurar
Quero ver se você tem atitude e se vai me encarar

Quero ver se você tem atitude e se vai encarar
Quero ver se você tem atitude e se vai encarar

Cabide - Mart'nália

Sunday, December 16, 2007

Por vezes, quando não conseguimos dormir, a tristeza é um gato que vem em silêncio na noite, olhos brilhantes, e nos roça as pernas a pedir que a mimemos. Ronrona baixinho como se quisesse mimos, mas na verdade só quer que a alimentemos, que lhe passemos a mão no pelo lustroso e deixemos esse carinho secreto envolver-nos.

Olhamo-la nesses olhos e descobrimos-lhe inteligências secretas, memórias de outras vidas, algumas da nossa mesmo, com uma melancolia lânguida de movimentos que se espreguiça, que se rebola, que nos seduz.

Se a sacudirmos, se a pusermos fora do edredon e tentarmos fechar-lhe a porta, vai miar, vai afiar as garras onde não deve, pode até deixar-nos um arranhão e a carne viva a arder vai ser insónia mais duradoura.

Se tivermos sorte, vamos adormecer antes de ter de a alimentar.


By Luís Soares

Sunday, December 9, 2007

Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
Dum par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes.



R E I N A L D O F E R R E I R A

Saturday, December 8, 2007

Quem vem e atravessa o rio
Junto à serra do Pilar
vê um velho casario
que se estende ate ao mar

Quem te vê ao vir da ponte
és cascata São Joanina
eirigida sobre um monte
no meio da neblina.

Por ruelas e calçadas
da Ribeira até à Foz
por pedras sujas e gastas
e lampiões tristes e sós.

Esse teu ar grave e sério
num rosto de cantaria
que nos oculta o mistério
dessa luz bela e sombria

Ver-te assim abandonado
nesse timbre pardacento
nesse teu jeito fechado
de quem mói um sentimento

E é sempre a primeira vez
em cada regresso a casa
rever-te nessa altivez
de milhafre ferido na asa

*

Porto Sentido - Carlos Tê
por Rui Veloso