Sunday, July 8, 2007

"Depois de vários dias com calor na orelha esquerda, reparo ao subir a rua, a que sempre subo, que há mais frio naquela rua, não bastam as fezes dos animais de companhia.
Enquanto medito e vou com atenção à merda (que é tarefa simples) sinto uma mão qualquer no cabelo, no sítio cego da nuca, mas não puxa o cabelo. Foi um toque a chamar-me, não era uma mão qualquer, a chamar-me para ficar parado naquele sítio cego da rua, e pediu-me a mão direita.
-Palma da mão para cima! – ordenou ele. E fico nauseado quando vejo que está pequena, especialmente pequena.
Fitou as rugas da palma, aquelas da vida e da morte, e como se as estivesse a cheirar ao mesmo tempo disse:
-Há quanto tempo! Sabes, estão pequenas porque não te visitei antes. – tranquilizou-me, sim tranquilizou, mas não consegui falar porque ainda sentia frio e a pele dele era áspera da ausência.
- Porque demoraste? És quem eu penso? – disse confuso.
- Sabes que estou nas impurezas e nas flores que compraste ontem. Já agora, porque compraste narcisos no meio das outras, não te bastam os outros estames mais pequenos?
- Gosto da flor, é branca, como o ruído do sexo.
- «Que ruído tan triste lo que hacen dos cuerpos cuando se aman!»
Que ruído tão triste, não, não é triste, é húmido. A água tépida não tem humor. Creio portanto que não lhe devas chamar triste.
- Shhhh. As palavras são demais, e tu tens de me escrever mais regularmente. As tintas estão a secar e eu preciso de ti para engravidar de um sonho. Sente este ponto. – disse enquanto calcava a palma da mão.
Juntou-me as mãos tépidas e uniu-as quentes, e de repente não havia absolutamente ruído algum, nem de pombos, nem de cães.
- Tenho de ir. – sorriu e beijou-me a face esquerda.
Partiu como Judas e impacientemente remordo porque não percebi porque me viu a mão, nem porque me aquece a orelha esquerda há dias.
Quando abandono aquele espaço sinto o corpo avolumado, penso no ruído dos corpos e vou para casa. Coloco as flores na água fresca, as flores ainda estão frescas, talvez do frio, e deito-me gelado no sofá a escrever este texto enquanto lá fora há pessoas a gritarem e duas mulheres que choram. Morreu-lhes o cão.
E eu, sozinho, sem cão para morrer, acendo um cigarro e limpo um disco de Rachmaninoff que o ponho a girar no Telefunken.
As notas do piano engrossam e o fumo do cigarro dissolve os gritos das mulheres. Descanso as mãos nas pernas e o corpo da cabeça.
(...)
Fumo, fumo e fumo porque a orelha ainda aquece, há cães que ladram e eu sei que ele dorme em todas as divisões da casa."

By José Miguel Vitorino
www.piquenique-avecmoi.blogspot.com

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